sábado, 25 de fevereiro de 2012

Direito à cidade: mobilidade urbana e tarifa zero

Diego Augusto Diehl
Acadêmico de Direito - UFPR, integrante do SAJUP
Greicy Rosa
Acadêmica de Direito - UFPR, integrante do SAJUP
Victor Alexander Mazura
Acadêmico de Direito - UFPR, integrante do SAJUP

Sob a bandeira do “Direito à Cidade”, diversos movimentos sociais se organizam para reivindicar direitos considerados fundamentais para o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. Tais direitos, porém, são sistematicamente negados às classes subalternas, postas à margem da cidade, de seus serviços e dos bens sociais que esta produz, em nome dos interesses de pequenos grupos de uma elite privilegiada, historicamente detentora do poder político.

Exemplo deste embate ocorre na luta pela mobilidade urbana, entendida como essencial para se garantir o pleno acesso à cidade e à efetivação de outros direitos, como saúde, educação, cultura, etc. Para isso, considera-se essencial democratizar o transporte coletivo, considerado serviço público essencial pela Constituição Federal, o que vai de encontro aos interesses do capital privado, que obtém grandes lucros a partir da operação deste sistema.

A proposta da “tarifa zero”, que visa abolir o regime de remuneração do serviço público de transporte coletivo a partir de taxas (ou preços públicos) em favor de um novo modelo de tributação que onere as classes mais abastadas da cidade, torna este embate ainda mais dramático, recorrendo-se ao Direito de forma cada vez mais sistemática, ora para defender, ora para atacar esta proposta, que visa revolucionar a forma de organização da cidade e impulsionar a Reforma Urbana.


1) A cidade capitalista e o direito à cidade

Nas últimas décadas, antigas reivindicações da classe trabalhadora vêm ganhando relevo sob moldes de novas bandeiras e novas formas de luta social, mais complexas e ao mesmo tempo resultantes do processo histórico de luta política preconizada por movimentos populares das mais variadas espécies, porém basicamente identificadas enquanto carentes de um dado bem social. Assim, cidadãos sem terra, sem moradia, sem educação, sem renda, sem alimentação, sem reconhecimento, enfim, sem direitos, buscam, ainda que sob grandes dificuldades, organizar-se para que, coletivamente, concretizem materialmente o direito que lhes fora negado.

Nesse sentido, o direito à cidade também é considerado inacessível a uma parcela considerável da população que nela vive, que, marginalizada do acesso aos bens sociais produzidos no contexto urbano, passa a lutar pela democratização da cidade. Conforme Henry Lefevbre, “o direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade”[1].

Trata-se, portanto, de um direito de caráter amplo, que abrange o direito à moradia, mas não se restringe a ele. Significa, na verdade, a materialização de todas as necessidades humanas, desde as mais elementares até aquelas consideradas mais “sofisticadas”, no contexto de um sujeito que vive na cidade.

Não é a toa, portanto, que o direito à cidade é reivindicado por diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, mobilizados pela concretização de direitos como moradia, saúde, educação, cultura, lazer, etc. Com isso, reivindicações que antes pareciam absolutamente segmentadas e isoladas na sociedade passam a ser vistas conectadas com outras demandas e outros direitos igualmente negados na (e pela) cidade, sob um mesmo “pano de fundo”.

É o fenômeno urbano, portanto, que tece os contextos das lutas por direitos por parte daqueles e daquelas que vivem na cidade. A rede de ligações entre estas diferentes realidades observadas dentro da cidade exige, por parte de cada sujeito, a compreensão acerca dos elementos que influenciam o modo de funcionamento das cidades contemporâneas, tornando mais consciente e organizada a atuação dos coletivos e organizações que lutam pela efetivação do direito à cidade.

Seria possível estabelecer uma espécie de “lógica geral” do “funcionamento” das cidades, independente de sua localização global? A resposta pode parecer contraditória, mas pode-se dizer que sim e que não, ao mesmo tempo. É que o processo de formação da cidade contém em si elementos em comum, mas que não podem ser acriticamente assimilados de forma que uma cidade européia seja tomada acriticamente como parâmetro de comparação com uma cidade latino-americana.

A história da Humanidade demonstra que a formação das cidades está diretamente relacionada ao estágio do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Foi apenas a partir do momento em que o homem descobriu as formas de manipular a terra e consumir alimentos plantados a partir de técnicas agrícolas que tornou-se possível a fixação em um território fixo [2].

A partir da fixação no território, inicia-se um processo mais complexo de divisão social do trabalho, e aquilo que antes eram pequenos clãs de caçadores se tornaram grandes aglomerados humanos cuja principal atividade era a agricultura [3]. Com o desenvolvimento da organização destas sociedades (também no seu sentido religioso, cultural, etc.), ocorre um rápido processo de crescimento do aglomerado, que ganha as feições de uma cidade.

A cidade, nos dizeres de Raquel Rolnik [4], passa a funcionar como um “ímã de gente”, sendo que, já neste momento, há uma mudança na relação do homem com a terra e o território. O surgimento da propriedade privada, nesse sentido, é essencial para compreender o processo de desenvolvimento da cidade, que passa a se organizar a partir do conflito entre as diferentes classes sociais, identificadas a partir das funções econômicas que cada qual desempenha na cidade.

Não é possível, porém, estabelecer um painel de “semelhanças” entre cidades sob diferentes formas de organização de seu modo de produção econômica e das diferentes classes sociais que nela se encerram. É por isto que a cidade antiga (composta por escravos e aristocratas) é distinta da cidade feudal (composta por servos e senhores feudais), que é distinta por sua vez da cidade capitalista (composta por proletários e burgueses). Tampouco é possível estabelecer paralelos mecanicistas entre cidades sob diferentes posicionamentos geopolíticos, ainda que sob um mesmo modo de produção (cidades capitalistas européias e cidades capitalistas latino-americanas, por exemplo).

Assim, diferentemente das cidades européias, nascidas em muitos casos sob a forma da cidade antiga ou medieval, as cidades latino-americanas nasceram já sob o contexto de organização da cidade capitalista, com uma posição radicalmente diferente daquela desempenhada pelas “metrópoles” européias. É nesse sentido que Milton Santos afirma que “todas as cidades latino-americanas nasceram a serviço das relações internacionais com os países mais evoluídos”, visto que “a cidade surgiu a serviço de uma colonização verdadeiramente arraigada” [5].

Assim, sob o jugo da colonização européia, que invadiu as Américas e impôs seus interesses econômicos aos nativos locais [6], as cidades latino-americanas passaram a se organizar em face das principais atividades econômicas desenvolvidas, como a expansão agrícola e a exploração mineira. Nesse sentido, as cidades mantiveram inicialmente apenas a função de abrigar a burocracia estabelecida pelas metrópoles européias, preocupadas a cobrança de tributos e com o escoamento da produção, o que explica o fato de as primeiras cidades se localizarem na faixa litorânea.

O fenômeno urbano apenas foi verificado de forma mais generalizada no Brasil a partir da terceira parte do século XX, reproduzindo com suas peculiaridades o processo ocorrido na Europa a partir do fim da Idade Média. O processo de expulsão dos trabalhadores do campo para as cidades, associado ao desenvolvimento do capitalismo industrial impulsionado pela burguesia enriquecida com a atividade mercantil, inaugurou uma fase mais acelerada da formação das cidades.

“O campo brasileiro moderno repele os pobres, e os trabalhadores da agricultura capitalizada vivem cada vez mais nos espaços urbanos. A indústria se desenvolve com a criação de pequeno número de empregos e o terciário associa formas modernas a formas primitivas que remuneram mal e não garantem a ocupação” [7]. Com estas palavras, Milton Santos identifica com precisão o processo que leva à formação das principais cidades brasileiras, o que não ocorre sem conseqüências drásticas, senão vejamos: “A cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter resposta, está desse modo fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções” [8].

É sob esta unidade dialética da produção de conflitos e da geração de soluções que funciona o processo geral da luta de classes dentro da cidade capitalista, que, ao transformar a terra em mercadoria, promove um amplo processo de segregação espacial que esconde e ao mesmo tempo evidencia claramente os conflitos de classes instaurados na cidade.

Nesse sentido, a experiência brasileira foi de uma velocidade arrebatadora. De país eminentemente agrário no início do século XX, passou por um amplo processo de mecanização da agricultura que concentrou ainda mais a propriedade agrícola, expulsando grandes quantidades de trabalhadores rurais para as cidades, onde seriam utilizados no processo de produção industrial, acelerado pela política de substituição de importações e fortalecimento da indústria nacional verificado a partir da década de 1930, e impulsionado nas décadas seguintes. Já ao final do século, as cidades brasileiras são abaladas em suas estruturas de cidades industriais, sob o modelo de substituição de importações, para se tornarem cidades sob o império do capitalismo financeiro [9].

A chegada ao Brasil do capitalismo financeiro, entendido como a fusão do capital industrial com o capital bancário [10], gera novas contradições dentro da cidade capitalista, que passa a se organizar em favor das grandes firmas, conforme Milton Santos: “a urbanização corporativa, isto é, empreendida sob o comando dos interesses das grandes firmas, constitui um receptáculo das conseqüências de uma expansão capitalista devorante dos recursos públicos, uma vez que estes são orientados para os investimentos econômicos, em detrimento dos gastos sociais” [11].

Como se vê, as conseqüências desse processo são dramáticas. As cidades industriais brasileiras, organizadas com o intuito de segregar a classe trabalhadora através da mercantilização da terra e das atividades de especulação imobiliária, passam a disponibilizar ainda menos recursos para ampliar a prestação de serviços essenciais às populações da periferia. As convulsões sociais que este processo gera, como não poderia deixar de ser, são respondidas através de extrema violência por parte dos aparelhos repressivos do Estado, que busca manter a “lei e ordem” em favor da manutenção das relações de produção (capitalistas) desta cidade.

Mais do que nunca, os serviços públicos disponibilizados pelo Estado à classe trabalhadora têm como único intuito, na fase atual do capitalismo financeiro, a reprodução ampliada do capital. É nesse sentido que o transporte coletivo deve ser compreendido, não como um serviço prestado à coletividade em prol do direito de ir e vir, mas como um serviço essencial para promover o deslocamento da classe trabalhadora, que vive nas periferias da cidade, para o local de trabalho, onde ocorre o processo de produção e circulação de mercadorias, necessários à geração de capital e à apropriação de mais-valia por parte dos donos dos meios de produção.

Alijado de meios para intervir neste serviço público, em face da falta de recursos e à sua própria composição política, o Estado, controlado por sua classe dominante, se tornou nesta nova fase do capitalismo brasileiro um mero regulador da prestação de serviços, cujo acesso se torna cada vez mais dispendioso, o que acarreta, na prática, no desrespeito aos direitos mais fundamentais da classe trabalhadora, como é o caso do direito a saúde, educação e mesmo o direito à cidade.

Desta forma, o direito à cidade se torna um direito auferível apenas por aqueles que tenham condição econômica para tal. Para isso, cada vez mais pessoas são levadas a aderir ao transporte individual (através de mecanismos de endividamento que oneram grande parte do orçamento das famílias trabalhadoras) e cada vez menos pessoas utilizam o transporte coletivo, conforme veremos a seguir.

2) Transporte coletivo: serviço público ou mercadoria?

Há no Brasil, hoje, 18 regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes, segundo o IBGE [12]. O transporte coletivo é indispensável para o acesso à cidade nestes grandes centros, caracterizada principalmente pelo surgimento de grandes metrópoles, que, devido à segregação urbana, conseqüência típica da mercantilização do solo preconizada pelas cidades capitalistas, tornam longas as distâncias a serem percorridas dentro das cidades, para o acesso a direitos e serviços básicos por parte das classes subalternas.

Agrava esta situação a ocupação desordenada do solo, provocada pela especulação imobiliária, que cria grandes vazios urbanos em regiões com bom acesso a bens e serviços, e, por outro lado, obriga as populações mais carentes a habitar regiões afastadas do centro da cidade e de seus equipamentos, como escolas, hospitais e mesmo parques. Há de se considerar também que há equipamentos que, por sua natureza, não podem ser construídos em todos os bairros de uma cidade, como universidades e hospitais especializados. Desta forma, grandes parcelas da população são obrigadas a ocupar áreas sem qualquer infra-estrutura, dependentes de meios de transporte para chegar até ela. Neste quadro, torna-se imperiosa a necessidade de garantir o acesso de todos ao sistema de transporte coletivo da cidade.

Entretanto, como mencionamos anteriormente, os sistemas de transporte coletivo não foram construídos visando a garantia da mobilidade urbana. Mas, se ele não foi pensado para tal fim, que outro fim estaria ele a assegurar? Para compreender melhor a situação, vamos traçar um panorama jurídico acerca do transporte coletivo de passageiros.

A Constituição Federal dispõe que os transportes coletivos são serviços públicos com caráter essencial, e que os Municípios devem prestá-lo direta ou indiretamente, sendo, neste último caso, sob o regime de concessão ou permissão [13].

Serviços públicos são como toda a atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade, mas fruível singularmente pelos administrados, prestada sob o regime de Direito Público. A doutrina administrativista clássica dá grande relevo à categoria dos serviços públicos, a ponto de doutrinadores afirmarem que a função primordial da Administração Pública é oferecer utilidades aos administrados, não se justificando a existência do Estado senão para tal desiderato [14]. O Estado pode prestar estes serviços direta ou indiretamente, ou seja, ou a Administração presta o serviço, ou ela delega para particulares sua execução, o que sempre depende de licitação. Importante frisar que, mesmo quando delegados a entes privados, os serviços públicos continuam a ser regidos pelo regime de Direito Público, que dá à atividade desenvolvida prerrogativas e restrições especiais.

A licitação deve ocorrer, obrigatoriamente, sempre que o Poder Público delegar a exploração de serviços públicos a terceiros, através de concessão ou permissão, nos termos do artigo 175, da CF. A licitação é um processo administrativo, por ser composta por diversos atos administrativos isolados, que tem por objetivo proporcionar igualdade de condições entre os fornecedores e desta forma fazer com que o Estado possa decidir pela melhor proposta. Ela é regida pela lei federal 8.666/1993, que também disciplina o contrato administrativo, editada pela União e válida para todas as esferas do Estado brasileiro, embora os demais entes federativos possam ter leis próprias, desde que compatíveis com a lei nacional.

Cabe diferenciar concessão e permissão, nos termos da legislação vigente. Permissão é conceituada pela doutrina como o ato administrativo unilateral, em que a Administração delega a execução de serviço público a particular, facultando ao permissionário a realização do serviço público. Diversos doutrinadores, como Bandeira de Mello [15] e Di Pietro [16] consideram que este instituto não se aplica a contratos celebrados por prazo certo, e com características negociais, muito comuns em serviços públicos como o transporte coletivo. Já a concessão é definida como a atribuição da prestação do serviço a terceiro feita de maneira negocial. Quem receber a concessão, exercerá o serviço por sua conta e risco, explorando-o diretamente, sob o regime de Direito Público.

O art. 175 da CF dispõe à lei o papel de estabelecer o regime das empresas concessionárias, os contratos, os direitos dos usuários, a chamada “política tarifária” e a qualidade do serviço. Na esfera nacional, a lei 8.987/1995 é diploma geral sobre concessões, que regulamenta as licitações da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, embora neste caso os demais entes federativos também possam legislar sobre concessões, desde que suas normas sejam também compatíveis com a lei nacional. O supracitado art. 30 da CF atribui competência legislativa aos Municípios nos assuntos de interesse local, dentro dos quais se enquadra o transporte coletivo.

As concessões e permissões de serviço público não podem ser confundidas com simples contratos administrativos para a prestação de serviços, que, conforme se verá adiante, é outro recurso disponível à Administração Pública para efetivar a prestação de serviços e a realização de obras públicas.

A concessão de serviços públicos se opera, após a licitação, através dos termos estabelecidos no contrato administrativo, que é produto da manifestação da vontade de duas ou mais partes, neste caso a Administração, motivada pelo interesse público, e o concessionário, sobre a qual incidem os diversos institutos contratuais importados do direito privado. Bandeira de Mello conceitua contrato administrativo como aquele que é travado entre a “Administração e terceiros, que por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo do objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses particulares do contratante privado” [17].

Um dos princípios mais importantes do contrato administrativo é o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que visa estabelecer a igualdade entre as obrigações assumidas pelo contratante, na hora do ajuste, e a contraprestação econômica obtida, como forma de proteção do lucro do particular. Para que isto ocorra, o Estado é quem assume os riscos e ônus de restabelecer a cláusula de lucro do ente particular, abalada tanto em face de situações geradas pela própria Administração (teoria do fato do príncipe) quanto por variações econômicas às quais nenhum dos contratantes tenha influenciado (teoria da imprevisão).

A garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato por parte da Administração faz com que haja uma situação de “capitalismo sem risco” por parte das empresas concessionárias, visto que a estas cabe apenas vencer a competição instituída pelo processo licitatório (suscetível, por sinal, a fraudes ou mesmo à sua dispensa indevida, como é o caso do município de Curitiba), sendo que as eventuais perdas que deveriam ser assimiladas pelas empresas privadas são assumidas pela coletividade, o que, no caso do transporte coletivo, se restringe aos seus próprios usuários, tendo em vista que a tarifa é considerada a principal fonte de remuneração do serviço.

Aqui começamos a responder a pergunta: quais objetivos que o atual modelo de transporte urbano persegue? Ou melhor, quais interesses estão representados e qual a função do transporte público na atual conjuntura urbana do país? Veremos.

Em praticamente todas as cidades brasileiras o serviço de transporte coletivo urbano é operado pela iniciativa privada, que busca não o atendimento das necessidades da população, mas o lucro. Além disso, pululam pelo país contratos administrativos precários ou vencidos, feitos sem licitação, claramente ilegais. Estes contratos, mesmo ilegais, protegem apenas os interesses dos capitalistas, em detrimento da maioria da população.

A proteção ao lucro dos empresários de ônibus resulta em tarifas de ônibus cada vez mais inacessíveis, devido ao seu custo. Dados do DENATRAN informam que 40% da população brasileira não tem acesso ao transporte público, devido ao preço das tarifas. Em 2005, a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda avaliou que a tarifa de ônibus urbano foi, dentre o grupo dos preços administrados, um dos itens que mais pressionou a inflação medida pelo IPCA nos 6 anos anteriores, atrás apenas da energia elétrica, outro serviço público submetido às “regras de mercado”, através da privatização de companhias estatais em muitos Estados da Federação.

Pode-se também indicar como indício da exclusão causada pelas tarifas a irrisória evolução do número de passageiros pagantes nos últimos anos. Em Curitiba, que é considerada modelo em gestão do sistema de transporte coletivo (em grande parte devido à criação de uma imagem ilusória pelo chamado “city marketing” [18]), o número de passageiros pagantes em 1988 era de 301.454.151, enquanto em 2006 registrou-se 303.506.299, sendo que em 2004 chegou-se a 284.013.188, menor índice de passageiros pagantes registrados durante este período. No país, dados do Governo Federal apontam para uma redução de 40% na demanda pelos ônibus urbanos, responsáveis por 90% do atendimento ao transporte coletivo de passageiros, em São Paulo, Rio de janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza e Goiânia.

Os números apresentados demonstram que, não obstante tenha ocorrido um crescimento populacional significativo das cidades nos últimos 20 anos [19] , a mesma variação não ocorreu quanto ao número de passageiros pagantes do sistema de transporte coletivo, o que se explica devido aos constantes aumentos tarifários, que, associados à deterioração deste serviço público, levou uma parcela da população a aderir ao transporte individual (ainda que para isso tenha assumido grandes ônus decorrentes do endividamento) e outra parcela ainda mais significativa a andar a pé.

Devemos ainda lembrar que a maior parte das pessoas que passaram a habitar Curitiba neste período, provenientes em sua maior parte de movimentos migratórios internos, foi forçada a habitar regiões desprovidas de equipamentos urbanos e distantes dos locais onde se concentram os empregos, ou seja, dependentes do transporte urbano de passageiros para conseguir a efetivação de direitos e o acesso aos serviços que a cidade oferece. Este processo que empurra a miséria para longe dos olhos da burguesia, para a periferia das cidades, tem outro efeito, que é aumentar a distância dos deslocamentos, pressionando ainda mais o custo da tarifa.

3) Tarifa zero e municipalização do transporte coletivo

Atualmente, o sistema de transporte serve apenas ao lucro dos capitalistas, através da remuneração pela tarifa (que beneficia os empresários do transporte coletivo) e da exploração da mão-de-obra que ele possibilita ao garantir o deslocamento da força de trabalho (que beneficia os donos dos meios de produção em geral). Ao ser organizado através de concessões e contratos que protegem o lucro dos donos das empresas de transporte, ele impede que a maioria da população usufrua da cidade e favorece o transporte individual, com os altos custos financeiros e ambientais, conhecidos por todos. Mesmo que as concessões passem a ser licitadas, como a Constituição dispõe, não haverá ruptura do atual quadro de exploração.

Já demonstramos que o transporte público é imprescindível para que largas parcelas da população tenham respeitados seus direitos fundamentais. Estes devem ser sempre entendidos como princípios, ou seja, como estado de coisas ideal, que deve ser atingido, e que se traduzem em competências negativas e competências positivas por parte do Estado. Não basta, portanto, a mera abstenção estatal que supostamente garante a liberdade, mas é necessária também a atuação do Estado, através de ações que levem à efetivação dos direitos fundamentais.

Neste sentido formulou-se um conceito de atuação estatal efetiva, que garante o acesso de toda a população ao sistema de transporte coletivo, e, conseqüentemente, concretiza o direito à cidade de forma material. Trata-se do projeto chamado “Tarifa Zero”, proposto por Lúcio Gregori em 1990, então secretário de transportes do Município de São Paulo. De maneira sintética, o projeto propõe o subsidiamento total da tarifa através das receitas gerais do Município e a municipalização do serviço de ônibus.

A municipalização é a delegação do serviço a uma empresa pública, que pode operar uma frota própria ou contratar particulares como prestadores de serviços, caso não seja possível suprir todas as linhas de ônibus. Neste caso, os empresários não exploram o serviço pela cobrança de tarifa diretamente dos usuários, mas, sim, são remunerados pelo serviço prestado, preferencialmente por quilômetro rodado, conforme as cláusulas estabelecidas em contrato administrativo de prestação de serviços.

A municipalização permite a instituição da Tarifa Zero, pois torna direta a prestação do serviço público de transporte coletivo pelo próprio Município. É que, se o Município prestasse indiretamente o serviço através da concessão de serviço público, a Tarifa Zero não seria juridicamente possível, visto que este instrumento tem por principal fonte de remuneração a tarifa cobrada pela concessionária diretamente do usuário. Não é o único instrumento de remuneração do serviço, visto que o Estado poderia utilizar de fontes para subsidiar o custo da tarifa, porém é certamente a principal fonte de recursos da concessionária.

“Daí haver-se dito que, em geral, o concessionário se remunera ‘basicamente’ pela cobrança de tarifas, pois não é necessário que o seja exclusivamente por elas. Se, entretanto, o serviço fosse remunerado apenas por fontes estranhas à exploração do serviço, não existiria concessão de serviço público, mas modalidade contratual diversa” [20].

Há um exemplo simples que explica a diferença de ambos os institutos. Quando o Poder Público decide construir um viaduto, poderá se valer de recursos próprios e construir por si mesmo, ainda que através da contratação de empreiteira que preste os serviços cabíveis. Estando concluída a obra, poderá ser liberada para a utilização “gratuita” da coletividade, que a pagou através de impostos e demais receitas pagas ao Estado. A Administração poderia, pelo contrário, não dispensar recurso algum para a construção da mesma obra, atribuindo a ente privado a sua construção e posterior exploração, através da cobrança de tarifas dos usuários, até que haja o devido ressarcimento pelos custos dispensados, além da convencional cláusula de lucro.

No caso de serviços públicos ocorre exatamente o mesmo. A Administração Pública pode prestá-los diretamente através de receitas gerais do orçamento, ainda que para isso contrate entes privados para a prestação de serviços (como ocorre no caso da saúde, educação, etc.), ou pode concedê-los à exploração da iniciativa privada, o que, nesse caso, ensejará necessariamente a cobrança de tarifas, por ser esta uma característica que é inerente à concessão e à permissão de serviço público.

“De resto, o pagamento mediante exploração do serviço (caso da concessão de serviço ou de obra pública, bem como da permissão de serviço público) tanto como o efetuado em dinheiro pelo Poder Público – contrapartida habitual na esmagadora maioria dos contratos administrativos – não são as únicas formas jurídicas concebíveis para acobertar serviços ou obras públicas” [21].

Devido a isto que, administrativamente, a Tarifa Zero apenas é possível nos casos de prestação direta do serviço de transporte coletivo, sendo que a concessão e a permissão inviabilizam a atribuição de fontes de remuneração distintas do regime “tarifário”.

Há, porém, restrições jurídicas à Tarifa Zero que não se limitam ao âmbito administrativo, visto que não é qualquer recurso que pode ser mobilizado pelo Poder Público para a remuneração do serviço através de outras fontes, não tarifárias. Suas regras são basicamente determinadas pelo Direito Tributário e pelo Direito Financeiro, e devem ser minuciosamente apresentadas, para que a reivindicação da Tarifa Zero não recaia no falacioso argumento da sua inviabilidade técnica.

Convém fazer uma observação neste ponto. É que, recentemente, uma série de lutas sociais em prol da gratuidade do serviço de transporte coletivo, especialmente para estudantes, esbarrou em decisões jurídicas que versavam sobre a questão da destinação de recursos para a garantia destas isenções. Conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal, é proibida a resignação de receitas tributárias por parte da Administração Pública sem que se aponte fonte alternativa de receita. Portanto, é essencial apontar quais são as possibilidades jurídicas para a implementação da Tarifa Zero, tendo em vista que o legislador construiu um sistema jurídico que não veda juridicamente a sua possibilidade, mas apenas a facultou ao interesse político do Poder Público.

Conforme as regras do Direito Financeiro, existem recursos considerados juridicamente vinculados ou desvinculados. Nesse sentido, conforme James Giacomoni, “esse critério de classificação da receita não decorre de nenhuma exigência legal específica, aparecendo nos orçamentos como necessidade prática de se conhecer o montante de recursos que já estão comprometidos com o atendimento de determinados programas e aqueles que podem ser livremente alocados a cada elaboração orçamentária” [22].

Receitas vinculadas, portanto, não podem viabilizar a prestação de serviços públicos alheios àqueles estabelecidos pela Constituição Federal e demais leis relacionadas. Apesar de não representar a maior parte das receitas da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, as receitas vinculadas são uma parte considerável do orçamento, estando disciplinadas no artigo 167, inciso IV, da Constituição Federal, que, na prática, estabelece como vinculados os recursos referentes à saúde (nos termos do art. 198, parágrafo 2º da CF), educação (art. 212 da CF) e organização da arrecadação tributária (art. 37, inciso XXII da CF).

Há ainda regras de Direito Financeiro que decorrem logicamente de institutos do Direito Tributário. Trata-se do caso dos chamados “tributos vinculados”: contribuição de melhoria (que é um tributo vinculado a uma atuação estatal que acarrete valorização patrimonial ao ente privado em face da realização de obra pública) e taxa (tributo vinculado a uma atuação estatal referente à utilização ou simples disponibilização de serviço público específico e divisível, ou o devido exercício do poder de polícia. Referente diretamente ao contribuinte).

Apenas uma situação pode ensejar a remuneração do transporte coletivo através de tributos vinculados, nos moldes do programa Tarifa Zero. Trata-se da taxa pela disponibilização de serviço público específico e divisível de transporte coletivo urbano. Conforme Paulo de Barros Carvalho, “Taxas são tributos que se caracterizam por apresentarem, na hipótese da norma, a descrição de um fato revelador de uma atividade estatal, direta e especificamente dirigida ao contribuinte. Nisso diferem dos impostos, e a análise de suas bases de cálculo deverá exibir, forçosamente, a medida da intensidade da participação do Estado. Acaso o legislador mencione a existência de taxa, mas eleja base de cálculo mensuradora de fato estranho a qualquer atividade do Poder Público, então a espécie tributária será outra, naturalmente um imposto” [23].

Conforme o artigo 79, inciso I, alínea “b” do Código Tributário Nacional, é possível a instituição de taxa nos casos de serviços públicos utilizados “potencialmente” pelo contribuinte, sendo de “utilização compulsória” e estando postos à sua disposição mediante atividade administrativa em pleno funcionamento. A linguagem pouco clara do legislador exige alguns esclarecimentos.

Primeiramente, a doutrina majoritária considera o termo “utilização potencial” um contrasenso, visto que só é possível a partir da prestação efetiva do serviço. Devido a isto, Geraldo Ataliba convencionou denominar como “disponibilização” o termo correto para o serviço público cuja instituição de taxa seja possível ainda que o contribuinte não tenha utilizado efetivamente.

Também o termo “utilização compulsória” é objeto de grandes polêmicas doutrinárias. Entende-se, porém, que desde a Constituição de 1988 não é possível considerar um serviço público de utilização compulsória em virtude de lei, sendo esta uma decorrência do direito à liberdade do cidadão. Desta forma, a “utilização compulsória” deixou de ter a perspectiva autoritária que a instituiu, para assimilar a perspectiva da “Constituição Cidadã”, que, preocupada com a satisfação das necessidades básicas da população, enumerou os serviços considerados imprescindíveis, cuja utilização é “compulsória” não em virtude de lei, mas por decorrência da vida concreta, das necessidades materiais de cada indivíduo.

Um serviço público é de atribuição da Administração Pública justamente porque o legislador constituinte reconheceu que a sua prestação tutela direitos considerados fundamentais a todo cidadão. Desta forma, “Os serviços públicos coletivos (em tese energia, água, esgoto, telefonia, transporte) se prestam a ser cobrados tributariamente, quando adotado o regime jurídico das taxas, pela mera disponibilidade dos serviços, desde que regular e em funcionamento” [24].

Fica evidenciado, portanto, que o transporte coletivo, além de ser notoriamente um serviço indispensável à coletividade, foi reconhecido pela Constituição Federal como serviço público essencial, conforme o artigo 30, inciso V. Basta, portanto, que se demonstre a sua especificidade e divisibilidade, mantendo na base de cálculo os princípios referentes ao tributo taxa, para que se denote a sua constitucionalidade.

Considera-se específico o serviço público que possa ser destacável em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas. Além disso, eles devem se direcionar a pessoa certa, a um número determinado ou ao menos determinável de sujeitos, tornando possível medir a utilização, “efetiva ou potencial”, de cada usuário, individualmente considerado em relação a tais serviços. Trata-se, portanto, do critério geral atribuído às taxas pela prestação de serviço, independente de a relação tributária nascer da utilização efetiva ou da mera disponibilização pelo Poder Público.

Conforme Luiz Alberto Pereira Filho, um serviço público posto à disposição do usuário pode ser considerado específico se cumprir com três premissas: (i) se o contribuinte puder tirar proveito do serviço, de forma direta e imediata, sem que, para isso, precise necessariamente usá-lo; (ii) se o sujeito ativo da taxa puder identificar o sujeito passivo sem que haja a utilização do serviço; e (iii) se o sujeito passivo puder destacar o serviço público em unidades autônomas de intervenção, utilidade ou necessidade públicas [25].

Quanto à divisibilidade de serviço público, o referido autor entende que se trata de um desdobramento da especificidade, sendo que a possibilidade de utilização individual, por cada usuário, permite auferir a medida mínima do custo que a atuação estatal representar para o Poder Público, em relação ao sujeito passivo. Basta, portanto, segundo seu entendimento, que o serviço público possa ser destacado em unidades autônomas de intervenção, “(…)sendo suficiente que a regra-matriz da taxa preveja um serviço suscetível de fruição individual, independentemente do efetivo destaque das unidades de intervenção, de utilidade ou de necessidade pública ocorrer ou não no plano do mundo fenomênico” [26].

“Para que haja divisibilidade, é imprescindível que o uso do serviço público apenas seja suscetível de utilização separada, por parte de cada um dos usuários. A suscetibilidade é decorrência da possibilidade de previsão, no plano da norma geral e abstrata, do montante equivalente ao custo individual do serviço público. Do contrário, ou seja, a impossibilidade de divisão do custo do serviço, indubitavelmente, impõe afirmar que o serviço é indivisível,não podendo jamais ser financiado por taxa” [27].

Cabe à base de cálculo, portanto, confirmar a chamada “hipótese de incidência” do tributo, o que, neste caso, representa a divisão dos custos inerentes à atuação estatal em face de cada cidadão a quem o serviço é considerado disponível. O cálculo é específico na medida em que se refere a gastos certos previstos no orçamento público (referentes ao serviço de transporte coletivo), e divisível na medida em que a disponibilização do serviço permite a cada contribuinte individualmente o pleno acesso ao sistema.

Assim como qualquer tributo, cabe também à taxa respeitar o princípio da capacidade contributiva, que significa que, neste caso, não será cabível a tributação de sujeitos que, para sanar a obrigação tributária, sejam obrigados a afetar o orçamento destinado à garantia do chamado “mínimo existencial”, que se refere aos direitos básicos garantidos pela Constituição Federal. Para efeito de cálculo, o DIEESE utiliza como parâmetro o artigo 7º, inciso IV da CF, que estabelece os direitos que devem ser supridos pelo cálculo do salário mínimo [28].

Diante disso, a Administração Pública é obrigada a respeitar o princípio tributário do não-confisco, do qual decorre a intributabilidade do mínimo existencial do contribuinte, devendo instituir faixas de pagamento com valores diferenciados, comumente denominadas de “tarifas sociais”. Esta isenção total ou parcial, conforme a capacidade contributiva do sujeito, acarreta ao Estado o dever de cobri-la através de seus recursos próprios, visto que o aumento do valor da obrigação aos sujeitos que demonstram capacidade contributiva seria uma clara afronta ao princípio da retributividade, que norteia a instituição das taxas e é essencial para fins de definição da base de cálculo do tributo.

O que se percebe é que esta limitação mínima (referente ao princípio da capacidade contributiva na modalidade da proteção do mínimo existencial) e máxima (princípio da retributividade) torna a taxa um tributo bastante limitado em termos arrecadatórios para garantir a remuneração do transporte coletivo, tendo em vista as profundas desigualdades sociais observadas no Brasil. É por este motivo que comumente aponta-se os impostos de competência municipal como as principais fontes de receita para a garantia da Tarifa Zero no transporte coletivo.

Os impostos são tributos considerados desvinculados da atuação estatal, mas vinculados à manifestação de capacidade econômica por parte do contribuinte. Sua arrecadação, por ser desvinculada, pode ser destinada a qualquer das destinações constitucionalmente admitidas, conforme as regras de Direito Financeiro.

A Constituição Federal estabelece quais são os tributos de competência municipal. Trata-se do IPTU (imposto sobre a propriedade territorial urbana), ISS (imposto sobre serviços) e ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis), sendo que, no caso da formulação inicial do Programa Tarifa Zero, propôs-se o aumento da alíquota daquele primeiro tributo, incidindo principalmente sobre bancos, estabelecimentos comerciais, industriais e residenciais que auferissem grande valorização [29]. Como não poderia deixar de ser, a proposta gerou grande polêmica, sendo que os vereadores sequer chegaram a votar a lei da tarifa zero, apesar de a maioria da população ter se colocado a favor da proposta.

A própria constitucionalidade da Tarifa Zero foi questionada à época, sendo que o custeio de serviços públicos específicos e divisíveis foi considerado constitucional “quando não houver sua tributação pelas taxas que lhes são respectivas, no caso de uma gratuidade justificada, por meio das demais receitas gerais do Estado, tais como aquelas advindas dos impostos, dos preços etc. Quanto à constitucionalidade desse custeio quando não se verifica a instituição de uma taxa – ou seja, quando não se verifica uma contrapartida econômica do administrado, de forma justificada -, assim se pronunciou Roque Carrazza, quando da reflexão acerca da constitucionalidade da não-cobrança de passagem de transporte (taxa pelo serviço, específico e divisível, de transporte coletivo de ônibus) pela Prefeitura Municipal de São Paulo (a denominada ‘Tarifa Zero/1990’): ‘Sem embargo das doutas opiniões em sentido contrário, estamos convencidos de que sim. [de que é constitucional o custeio por outras receitas do Estado] Embora, a nosso sentir, a medida seja, sob o ângulo político, inconveniente, entendemos que, sob a ótica do Direito, é prosperável’ ” [30].

O que se vê, portanto, é que o Município contém os instrumentos suficientes para a aplicação imediata da Tarifa Zero ao transporte coletivo, visto que é constitucionalmente competente para instituir taxa pela disponibilização do serviço “gratuito” a toda a população, além de poder alocar recursos provenientes dos impostos municipais (que são tributos não vinculados) para a remuneração do serviço, desde que respeitados os recursos mínimos estabelecidos para educação, saúde e arrecadação fiscal.

4) Conclusão

Procuramos demonstrar que, nos dias de hoje, a implementação do programa Tarifa Zero nas cidades brasileiras é um imperativo de justiça social, de sustentabilidade do modelo urbano e uma forma de efetivação do direito à cidade. Não se trata, porém, da implementação definitiva do direito à cidade, mas é o passo decisivo a ser dado nesse sentido.

É que a Tarifa Zero não abole em definitivo aquela que é a contradição fundamental da cidade capitalista (a segregação urbana, preconizada pela mercantilização do solo), mas a coloca em evidência, pois, a partir do momento em que se disponibiliza o acesso à cidade às populações postas à sua margem, estas se defrontam com a barreira final imposta pelo capitalismo ao direito à cidade, que é a propriedade privada do solo e dos demais meios de produção.

Não se trata, portanto, de uma medida reformista que visa garantir o acesso à cidade sem questionar a “periferização” urbana que decorre da mercantilização do solo, mas de uma bandeira de luta tática da classe trabalhadora, que questiona, afinal de contas, a essência da organização da cidade capitalista. Prova disso é que, conforme se demonstrou, não há entraves jurídicos identificáveis dentro da legislação estatal (editada majoritariamente pela classe dominante) à aplicação imediata da Tarifa Zero, mas apenas um conflito de interesses políticos inerentes ao próprio processo da luta de classes nas cidades.

Conforme Henri Lefevbre, “A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e das forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode deixar de se apoiar na prsença e na ação da classe operária, a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. Apenas esta classe, enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos ‘centros de decisão’ ” [31].

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Notas:

1 LEFEVBRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991. P. 135.

2 ENGELS, Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 4ª ed. São Paulo: Global, 1990.

3 ENGELS, Friedrich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Escala, s/d.

4 ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

5 SANTOS, Milton. Ensaios sobre a urbanização latino-americana. São Paulo: Hucitec, 1982. P. 13.

6 DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro.

7 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 1996. P. 10.

8 Idem. P. 11.

9 TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, s/d.

10 LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo: fase superior do capitalismo.

11 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. P. 95.

12 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. <http://www.ibge.gov.br/. Acesso em 02/08/2008.

13 In verbis: Art. 30. Compete aos Municípios: (…)V – organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão os serviços públicos de caráter local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.

14 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005. P.297.

15 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

16 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

17 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. P. 610.

18 GARCIA, Fernanda Ester Sánchez. Cidade espetáculo – política, planejamento e city marketing. Curitiba: Palavra, 1997.

19 A população de Curitiba passou de 1.351.035, em 1991, para 1.797.408 de habitantes em 2007, e a população da Região Metropolitana passou de 2.101.681 para 3.172.357 habitantes. Fonte: IBGE. Disponível em http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?z=cd&o=7&i=P (dados de 1991) e em http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?z=cd&o=17&i=P (dados de 2007).

20 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. P. 653-654.

21 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. P. 653-654.

22 Vide: GIACOMONI, James. Orçamento Público. São Paulo: Atlas, 2000. Cap. 7, ponto E.

23 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 38-39.

24 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Serviços públicos e tributação. In TORRES, Heleno Taveira. Serviços Públicos e Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin,2005. P. 248.

25 PEREIRA FILHO, Luiz Alberto. As taxas no sistema tributário brasileiro. Curitiba: Juruá, 2002. P. 82.

26 PEREIRA FILHO, Luiz Alberto. As taxas no sistema tributário brasileiro. P. 82.

27 PEREIRA FILHO, Luiz Alberto. As taxas no sistema tributário brasileiro. P. 86.

28 Vide “salário mínimo necessário”, disponível em <http://www.dieese.org.br/>. Acesso em 04/08/2008.

29 Vide: SINGER, Paul. Um governo de esquerda para todos. – Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989 – 1992). São Paulo: Brasiliense, 1996. Cap. 7.

30 BUSSAMARA, Walter Alexandre. Taxas: limites constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 80.

31 LEFEVBRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991. P. 112.

Fonte: UFSC
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Documentário sobre Transporte coletivo em Feira de Santana – 2011



Projeto Tarifa Zero - entrevista com Lúcio Gregori

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